Héstia, deusa grega do Fogo

Héstia significa deusa da lareira. Da mesma família etimológica que o latim Vesta (Vesta), cuja fonte é o indo-europeu wes, “queimar”, “passar pelo fogo, consumir”. Héstia é a lareira em sentido estritamente religioso ou, mais precisamente, é a personificação da lareira colocada no centro do altar; depois, sucessivamente, da lareira localizada no meio da habitação, da lareira da cidade, da lareira da Grécia; da lareira como fogo central da terra; enfim, da lareira do universo. E, embora Homero lhe ignore o nome, Héstia certamente prolonga um culto pré-helênico do lar.

Se bem que muito cortejada por Apolo e Poseidon, obteve de Zeus a prerrogativa de guardar para sempre a virgindade. foi ininterruptamente cumulada de honras excepcionais, não só por parte de seu irmão caçula, mas de todas as divindades, tornando-se a única deusa a receber um culto em todas as casas dos homens e nos templos de todos os deuses. Enquanto os outros Imortais viviam num vaivém constante, Héstia manteve-se sedentária, imóvel no Olimpo. Assim como o fogo doméstico é o centro religioso do lar dos homens, Héstia é o centro religioso do lar dos deuses. Essa imobilidade, todavia, fez que a deusa da lareira não desempenhasse um papel algum no mito. Héstia permaneceu sempre mais como um princípio abstrato, a Idéia da Lareira, do que como uma divindade pessoal, o que explica não ser a grande deusa necessariamente representada por imagem, uma vez que o fogo era suficiente para simbolizá-la.

Personificação do fogo sagrado, a deusa preside à conclusão de qualquer ato ou conhecimento. Ávida de pureza, ela assegura a vida nutriente, sem ser ela própria fecundante. É preciso observar, além do mais, que toda realização, toda prosperidade, toda vitória são colocadas sob o signo desta pureza absoluta. Héstia, como Vesta e suas dez Vestais, talvez simbolizem o sacrifício permanente, através do qual uma perpétua inocência serve de elemento substitutivo ou até mesmo de respaldo às faltas perpétuas dos homens, granjeando-lhes êxito e proteção.

Quanto ao fogo propriamente dito, a maior parte dos aspectos de seu simbolismo está sintetizada no hinduísmo, que lhe confere uma importância fundamental. Agni, Indra e Sûrya são as “chamas” do nível telúrico, do intermediário e celestial, quer dizer, o fogo comum, o raio e o sol. Existem ainda dois outros: o fogo da penetração ou absorção (Vaishvanara) e o da destruição, que é um outro aspecto do próprio Agni.

Consoante do I Ching, o fogo corresponde ao sul, à cor vermelha, ao verão, ao coração, uma vez que ele, sob este último aspecto, ora simboliza as paixões, particularmente o amor e o ódio, ora configura o espírito ou o conhecimento intuitivo. A significação sobrenatural se estende das almas errantes, o fogo-fátuo, até o Espírito divino: Brahma é idêntico ao fogo (Gîta, 4,25).

O simbolismo das chamas purificadoras e regeneradoras se desdobra do Ocidente aos confins do Oriente. A liturgia católica do fogo novo é celebrada na noite de páscoa. O divino Espírito Santo desceu sobre os Apóstolos sob a forma de línguas de fogo. Tanto no Antigo quando no Novo Testamento, o fogo é elemento que purifica e limpa, tornando-se, destarte, o veículo que separa o puro do impuro, destruindo eventualmente este último. Por isso mesmo, o fogo é apresentado como instrumento de punição e juízo de Deus (Salmos 50:3; Marcos 9:49; Tiago 5:3; Apocalipse 8:9). Cristo fala de um fogo que não se apagará (Mateus 5:32; 18:8; 25:41). Deus será como um fogo, distinguindo o bom do menos bom (Salmo 17:3; 1 Coríntio 3:15). Sua força, que tudo penetra, purifica também: nesse sentido é que o batismo de Jesus havia de agir como fogo (Mateus 3:11).

Os taoístas penetram nas chamas para se liberar do condicionamento humano, uma verdadeira apoteose, como a de Héracles, que, para se despir do invólucro mortal, subiu a uma fogueira no monte Eta. Mas há os que, como os mesmo taoístas, entram nas chamas sem se queimar, o que faz lembrar o fogo que não queima do hermetismo ocidental, ablução, purificação alquímica, fogo este que é simbolizado pela Salamandra.

O fogo artificial do hinduísmo é substituído por Buda pelo fogo interior, que é simultaneamente conhecimento penetrante, iluminação e destruição do invólucro mortal. O aspecto destruidor do fogo comporta igualmente uma relação negativa e o domínio do fogo é também uma função diabólica. Observe-se, a propósito, a forja: seu fogo é, ao mesmo tempo, celeste e subterrâneo, instrumento de demiurgo e demônio. A grande queda de nível é a de Lúcifer, “o que leva a luz celeste”, precipitando nas fornalhas do inferno: um fogo que brilha sem consumir, mas exclui para sempre toda e qualquer possibilidade de regeneração.

Em muitas culturas primitivas, os inumeráveis ritos de purificação, as mais das vezes, ritos de passagem, são característicos de culturas agrárias. Configuram certamente os incêndios dos campos, que se revestem, em seguida, de um tapete verde de natureza viva. Entre os gauleses, os sacerdotes druidas faziam grandes fogaréus e por eles faziam passar o rebanho para preservá-lo de epidemias. O grande político e excepcional escritor Caio Júlio César (100-22 A.E.C.) nos fala, no B. Gal., 6, 16, 9, de gigantescos manequins, confeccionados de vime, que os mesmos druidas enchiam de homens e animais e transformavam em fogueira.

O Fogo, nos ritos iniciáticos de morte e renascimento, associa-se a seu princípio contrário, a Água. Os chamados Gêmeos de Popol-Vuh do mito maia, após sua incineração, renascem de um rio, onde suas cinzas foram lançadas.

Mais tarde, os dois heróis tornam-se o novo Sol e a nova Lua, Maia-Quiché, efetuando uma nova diferenciação dos princípios antagônicos, fogo e água, que lhes presidiram à morte e ao renascimento. Desse modo, a purificação pelo fogo é complementar da purificação pela água, tanto num plano microcósmico (ritos iniciáticos), quanto num aspecto macrocósmico (mitos alternados de dilúvios, grandes secas e incêndios). Para os astecas, o fogo terrestre, ctônio, representa a força profunda que permite a complexio oppositorum, a união dos contrários, a ascensão, a sublimaçãoda água em nuvens, isto é, a transformação da água terrestre, água impura, em água celestial, água pura e divina. O fogo é, pois, o motor, o grande responsável pela regeneração periódica. Para os bambaras o fogo ctônio configura a sabedoria humana e urânio, a sabedoria divina.

Quanto à significação sexual do fogo, é preciso observar que ela está intimamente ligada à primeira técnica de obtenção do mesmo pela fricção, pelo atrito, pelo vaivém, imagem do ato sexual, enquanto a espiritualização do fogo estaria ligada à aquisição do mesmo pela percussão. Mircea Eliade chega à mesma conclusão e opina que a obtenção do fogo pelo atrito é tida como o resultado, a “progenitura” de uma união sexual, mas acentua, de qualquer forma, o caráter ambivalente do fogo: pode ser tanto de origem divina quanto demoníaca, porque, segundo certas crenças arcaicas, o fogo tem origem nos órgãos genitais das feiticeiras e das bruxas.

Para Gaston Bachelard o “amor é a primeira hipótese científica para a reprodução objetiva do fogo e antes de ser o mesmo filho da madeira, é filho do homem… O método de fricção surge naturalmente. É espontâneo, porque o homem tem acesso a ele por sua própria natureza. Na verdade, o fogo foi surpreendido em nós, antes de ser arrancado do céu…”. Há, consoante o mesmo Bachelard, duas direções ou duas constelações psíquicas na simbologia do fogo, segundo é botido por percussão ou por atrito. No primeiro caso, está intimamente ligado ao relâmpago e à flecha e possui um valor de purificação e iluminação, convertendo-se no prolongamento ígneo da luz. Diga-se, de caminho, que puro e fogo em sânscrito se designam pela mesma palavra: agnih, que é, aliás, um empréstimo do hitita Agnis, em latim ignis, fogo. A esse fogo espiritualizante se prendem os ritos de iniciação, o sol, os fogos de elevação e à luz. Opõe-se, nesse sentido, ao fogo sexual, obtido por fricção, como a chama purificadora se contrapõe ao centro genital da lareira matrilinear, como a exaltação da luz celeste se distingue do ritual de fecundidade agrária. Assim orientado, os simbolismo do fogo dimensiona a etapa mais importante da intelectualização do cosmo e afasta mais e mais o homem de sua condição animal. Prolongando ainda o símbolo nessa mesma direção, o fogo seria o deus vivo e pensante, que nas religiões arianas da Ásia recebeu o nome de Agni e Ator.

Em síntese, o fogo que queima e consome é um símbolo de purificação e regeneração, mas o é igualmente de destruição. Aí se encontra a nova inversão do símbolo. Purificadora e regeneradora a água também o é. Mas o fogo se distingue da água na medida em que ele configura a purificação pela compreensão, até sua forma mais espiritual, pela luz da verdade; a água simboliza a purificação do desejo até sua forma mais sublime, a bondade.

Fonte: “Mitologia Grega”, Junito de Souza Brandão. Editora Vozes, vol. 1, 2002/17ª edição.

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